Uma simples menção à premissa da minissérie Assédio, uma das primeiras produções do Globoplay, plataforma de streaming da Rede Globo, é suficiente para causar arrepios — para usar um eufemismo. Afinal de contas, o projeto em 10 episódios dirigido por Amora Mautner é livremente inspirado na hedionda e nefasta trajetória do criminoso sexual Roger Abdelmassih — vivido na dramaturgia por Antonio Calloni — médico que se valia da sua posição para estuprar pacientes. Entretanto, como fez questão de afirmar a protagonista Adriana Esteves (Stela), durante painel da minissérie, que fará a ponte do streaming para a transmissão em rede aberta, no Rio2C 2019, engana-se quem pensa que Assédio é uma mera tragédia.
Muito pelo contrário, aliás, defendeu a estrela, elogiando a direção de Mautner e os roteiros de Maria Camargo e Bianca Ramoneda: “Passamos situações dificílimas nas filmagens porque levar para o real, para o supostamente real da ficção, essas dores e as crueldades que esse monstro causou em relação àquelas mulheres, mas tinha uma coisa muito bonita ali. Me orgulho de ter participado desta série e ajudar a contar essa história… Você fala “assédio”, “estupro”, “violência” e quem ouve não quer nem ver, a gente já vê tanta coisa tão triste por aí. Só que a série é muito elegante, muito bonita, e fala mais sobre amizade, sororidade, esperança, estender a mão, ter coragem… É uma série corajosa!”, arrematou Esteves.
As palavras de uma das protagonistas da minissérie deram o tom da apresentação, onde a atriz, Mautner, Camargo e Ramoneda ressaltaram a tênue linha sobre a qual Assédio caminha, permanentemente dividido entre uma pulsão de morte e outra de vida — que triunfa sobre a primeira, no fim das contas. Estruturando o suspense dramático como um cruzamento de arcos narrativos diametralmente opostos — ou seja, aquele do médico e aquele trilhado pelas pacientes que violentou —, Camargo e Ramoneda chocaram duas tendências: inicialmente a da máxima ascensão do personagem de Calloni, evidenciando o auge profissional e como criminoso sexual de Abdelmassih, e posteriormente o da vitória das vítimas. É por isso que, por exemplo, um primeiro contato com a minissérie faça realçar em especial aos olhos do espectador a estética sufocante e dilacerante do projeto, em particular nas cenas de estupro. De acordo com Mautner, foi por causa das sequências de violência sexual que a morte se fez tão presente: “O estupro envolve o corpo feminino nu, e temos muitas cenas de estupros, então pensei muito em como não ativar ou não suscitar em uma cabeça torta um sentimento sexual […] Para mim, precisávamos ter uma atmosfera de Instituto Médico Legal. Essas mulheres não são só estupradas: elas também estão, de alguma forma, morrendo […] As cenas precisavam ser muito doídas para quem visse e não podia ter sexualidade”.
Daí decorre, consequentemente, a tonalidade esverdeada com que os capítulos de Assédio como um todo são banhados, sendo a cor um dos muitos elementos — incluindo as performances do elenco, a direção de arte, o trabalho da câmera, etc. — que compuseram o aspecto asséptico da história de um médico que, diferententemente do Dr. Jekyll/Mr. Hyde de Robert Louis Stevenson, é o próprio monstro, responsável por mais de 200 vítimas de abusos sexuais: “A atmosfera de morte era fundamental para que não houvesse sexualidade […] Pensamos muito em necrotérios. Como seria ter um necrotério dentro de uma clínica Onde que vira o necrotério […] Tentamos pulsar a morte de todas as formas”. No entanto, como as quatro artistas ratificaram, a intenção era trazer o equilíbrio, contrapondo declínio e ascensão dos dois lados, e, por fim, uma resposta à tragédia: “Não queria contar a história de um cara que destrói todo mundo. Não me interessa essa história. Me interessa falar sobre machismo, sobre um mundo que permite que esse cara exista […] Mas eu quero o outro lado também. A gente está fadado a ficar no mesmo lugar Tá todo mundo ferrado Nasceu mulher não tem mais jeito Não, espera aí, tem jeito […] Nós temos uma semente de mudança. Nunca se falou tanto sobre isso, e nunca tão explicitamente. Estaremos na TV aberta falando sobre isso. Gostem da série ou não, o essencial é falar sobre o tema”.
Assim, apesar de também terem ponderado que as condições de segurança e de respeito para as mulheres ainda são muito aquém do básico dentro das questões de direitos humanos, Esteves e cia. apostaram nas mudanças de paradigmas que vêm ocorrendo mais recentemente. Surgindo na esteira do movimento #MeToo, que abalou Hollywood com as ondas de revelações de vítimas de abusos sexuais ocorridos na maior indústria do entretenimento no mundo, Assédio também faz o salto para a exibição em rede nacional em uma época onde palavras como “assédio” e “feminícidio” tornam-se cada vez mais comuns na mídia — e para consertar um problema milenar como a violência contra as mulheres, é preciso reconhecê-lo. A importância da palavra, do dizer, é, por isso mesmo, tão fundamental para a minissérie quanto as chocantes imagens. Não é à toa, de fato, que Assédio remeta ocasionalmente à estrutura não-linear de True Detective, aclamada série policial da HBO na qual testemunhos e rememorações são essenciais para o desenrolar da trama: “O valor da palavra era muito importante, era um dado da história, um tema. Tem essa coisa que o Abdelmassih até hoje repete: ‘é a minha palavra contra a delas’ […] Então, qual é o valor que tem a palavra Quando a justiça condenou esse homem, ela o condenou porque considerou que os relatos das vítimas tinham valor de prova. E essas mulheres se salvaram pela palavra, porque conseguiram falar”, afirmou Camargo. “Está longe de estar bom, está longe de chegarmos no momento ideal, mas estamos a caminho. A célula está aí. Quanto mais produções como Assédio existirem na televisão e no cinema, melhor, porque é uma lutar muito grande. Então, se é um trabalho que influencia para o bem, para a denúncia, para exposição do que é errado, ele cumpre uma função artística e social muito grande”, arrematou Esteves sobre a importância da minissérie, que tem um potencial de mudança e de transformação, segundo as roteiristas, para conscientizar o público acerca da violência sistêmica contra as mulheres. Assédio, já disponível no catálogo do Globoplay, chega às telinhas no dia 3 de maio.