Adriana Esteves revela assédio quando modelo: “Te seguram e tocam onde não devem”
Em quase 30 anos de carreira, Adriana Esteve conta nos dedos as longas entrevistas em que fala sobre sua intimidade. Em uma conversa franca com Marie Claire, ela fala sobre sua saúde mental e a perda inesperada de uma irmã, relembra os assédios sexuais vividos na infância e explica porque prefere guardar sua intimidade.
São poucos os atores que, nos dias de hoje, recebem um jornalista em sua casa. Adriana Esteves é uma dessas raridades. Numa quarta-feira chuvosa no Rio de Janeiro, ela recepciona a repórter no hall de seu apartamento, como se a conhecesse. O jeito acolhedor da atriz é logo percebido na maneira de falar e nos gestos contidos. A mesa posta com sanduíches feitos pela própria, café e bolo de cenoura ajudam na percepção. Em poucos minutos, Adriana deixa a jornalista à vontade, mesmo sem ter o costume de dar entrevistas. “Tem uma timidez, mas por ter começado nova na profissão, achava que era obrigada a responder todas as perguntas, até as que não tinham resposta. Não foi bom”, diz. No apartamento com uma vista – e decoração – estonteante para a praia de São Conrado, chama a atenção uma caixa de vidro com incontáveis rolhas de garrafas de vinho que tomou com o marido, o ator Vladimir Brichta, em 12 anos casados. “Xuxu, você não acredita”, diz Adriana quando ele entra em casa. “A fotógrafa era a Nana Moraes e ela me disse que foi melhor amiga e apaixonada pelo Marco na adolescência”, conta ao companheiro, referindo-se ao ex-marido, o ator Marco Ricca, pai de seu primeiro filho, Felipe, 18 anos. Com Vlad, teve Vicente, 11, e adotou Agnes, 20, filha do primeiro casamento dele (a ex-mulher morreu quando a menina tinha 2 anos).
Durante a conversa, ela deixa escapar o sotaque baiano de Laureta, a cafetina que interpreta na novela das 21h, Segundo Sol, de João Emanuel Carneiro, mesmo autor que criou a vilã Carminha, de Avenida Brasil (2012), e a fez conquistar público e crítica com sua atuação avassaladora. Adriana Esteves é, sem dúvida, uma das melhores atrizes de sua geração. “A Carminha foi o maior gozo da minha vida”, afirma. “E essa sensação dura até hoje. Ainda chego a lugares e escuto ‘mãe, a Carminha está aí’, diz. Atualmente em cartaz com o longa Benzinho, de Gustavo Pizzi, vive uma mulher que tem problemas com o marido. No início do ano, gravou Assédio, série dirigida por Amora Mautner, baseada nas histórias das vítimas do especialista em reprodução humana Roger Abdelmassih, condenado por abusar sexualmente de suas pacientes. Filmou também Mariguella, estreia de Wagner Mourana direção, previsto para 2019, em que interpreta Clara Charf, a viúva do guerrilheiro assassinado na ditadura militar. “Ela lutou por ele a vida inteira, foi seu grande amor. E luta pela memória dele até hoje”, conta a atriz.
Quando o assunto é amor e família, Adriana sempre assumiu o papel da defensora. “Minha mãe conta que sou assim desde pequena. Quando brigavam com a minha irmã mais velha, a Cláudia, falava ‘quem foi, vou lá agora’. Eu era a pequenininha que queria brigar. Hoje, brigo nos meus personagens”, conta. Aos 48 anos e comemorando 30 de carreira, ela coloca suas décadas no divã.
MARIE CLAIRE. Você está no elenco de Assédio, série de Amora Mautner que conta a história de mulheres que foram abusadas sexualmente por um médico. Qual a importância de contar essas histórias?
ADRIANA ESTEVES Faço uma das vítimas, a história se passa nos anos 1990. A minha personagem é uma professora muito bem casada, e com os abusos terríveis que sofre de um médico, desenvolve um problema psicológico grave e o casamento acaba. Ela para de dar aula e vai para uma clínica psiquiátrica. As vítimas desse médico se unem para denunciá-lo e colocá-lo na cadeia. A série se passa na minha geração, época que eu poderia ter feito uma inseminação e poderia ter caído na mão de um monstro deste. Muitas conhecidas fizeram e, se elas sofreram algum abuso, talvez nunca tenham contado para ninguém. Existe a vergonha de dizer para o marido, para o pai, para a melhor amiga. Agora, estamos conseguindo falar o que tem que ser falado.
MC Quais tipos de assédio já enfrentou na vida?
AE Vários. Quando era criança, morava no subúrbio do Rio de Janeiro [Méier], e brincava na rua. Alguns homens paravam o carro e ficavam chamando as meninas. Eu sabia que aquilo estava errado e saía correndo. Mas não tinha coragem de contar em casa e meus pais não sacavam que era perigoso, a situação se repetia. Não era fácil. Passei anos tendo o pesadelo de correr de um carro, enquanto minha perna ia ficando fraca e não conseguia entrar em casa. Já mais velha, eu pegava três ônibus para chegar à Zona Sul, onde estudava. Dependendo do bairro, colocava um camisetão, amarrava o casaco na cintura. Andava na rua escondendo minha feminilidade. Como era cansativo! Hoje, eu gritaria, contaria para todo mundo e denunciaria.
MC Passou por situações no ambiente profissional?
AE Sim. Onde mais me aconteceu foi trabalhando como modelo, naquela fase que você não sabe se é menina ou mulher, que não está preparada psicologicamente para lidar com situações como essas. Haviam fotógrafos abusadores que, enquanto estavam no domínio, luzes ligadas, te fotografando de biquíni, de lingerie, seguravam e tocavam em lugares do seu corpo que não eram para ser tocados. Um constrangimento horrível. E faziam isso de forma recorrente, com todas as modelos. Eu inventava que estava me sentindo mal, que precisava pegar meu roupão. Isso tem que acabar.
MC Como começou a trabalhar como modelo?
AE Meu sonho era ser bailarina clássica, comecei a dançar aos 11 anos. Mas, aos 16, comecei a ficar cansada, achava que precisava de sol, que o balé era opressor, competitivo, sofrido. O balé é disciplina, que até gosto, mas era uma disciplina em exagero, quase uma falta de liberdade. Larguei, passei a ser mais vaidosa e comecei a trabalhar como modelo fotográfico, a fazer comerciais em que atuava. Fiz um teste para uma novela da TV Globo, Top Model (1989), passei e descobri que era o que mais queria fazer na vida. Fiquei encantada em estudar e atuar.
MC Tinha preocupação em ser magra?
AE Muita. A ponto da minha mãe ir na escola de balé conversar com a professora, porque eu não queria engordar, era muita preocupada. Mas não cheguei a desenvolver nenhum distúrbio alimentar, sendo filha de pediatra, não teria como. Até hoje não gosto do paladar doce. Não sei se desacostumei porque não comia açúcar ou se fui educada a não comer. Olhava as bailarinas magérrimas e achava elas lindas. Depois, parei de achar.
MC Que educação recebeu dos seus pais?
AE Tive uma educação tradicional, disciplinada. Minha rotina era regrada: escola, balé, aula de inglês e casa. Eu e minhas duas irmãs éramos resultado do que meus pais planejavam pra gente. Nasci em uma família de classe média, mas com dificuldades. Meu pai era médico e minha mãe professora, queriam que estudássemos em escola particular e as melhores de inglês, de balé. Tínhamos uma meta para corresponder, era assim que acreditavam que abririam nossas portas para a vida adulta. E não sou tão diferente com os meus filhos.
MC Você casou aos 19 anos com seu namorado da juventude, um professor de jiu-jitsu. Como foi para seus pais te verem sair de casa?
AE Eles ficaram grilados, mas chegaram à conclusão de que eu teria que passar por isso. Era muito nova, mas estava apaixonadíssima. Eu queria ir para o mundo. Casei na igreja, troquei sobrenome e fui morar com o Totila [Jordan Neto] numa república de surfistas, com mais quatro casais de amigos perto da praia, na Barra da Tijuca. Super astral, mas difícil. Eu não sabia cozinhar, a grana era pouca, estava começando a vida. Fiquei com ele quatro anos no total e nos separamos quando eu tinha 21.
MC Pouco tempo depois, aos 23, você entrou numa depressão profunda. Como foi essa fase?
AE Eu havia me separado, comecei a fazer uma novela atrás da outra, com personagens grandes, ganhei exposição e tinha pouca maturidade. Fiquei perdida, não segurei a onda. E aí veio a depressão. Passei pela fase de não conseguir comer, de não sair da cama, de achar um sofrimento tomar banho, de engordar muito com o antidepressivo. Acreditava profundamente nas fantasias que surgiam na minha cabeça, não conseguia diferenciar o que era real e o que não era. Tinha certeza de que estavam acontecendo coisas horríveis mas demorei para entender que estava com uma doença chamada depressão. Demorei a tomar remédio. Esse processo durou um ano, um ano e meio.
MC Chegou a pensar em se matar?
AE Meu maior sofrimento era que achava que ia morrer, mas queria muito viver. Ficava triste porque pensava “a minha vida era tão boa e já está acabando, tenho tanta coisa para viver”. A dor da depressão foi tão grande que parecia que eu ia morrer e tive a chance de não morrer. A sensação que ficou é de ter ressuscitado. Fiquei muito tempo sem falar sobre isso, hoje não me incomodo. Na época, quando sabia que uma pessoa tinha passado pela depressão, só queria falar desse assunto, queria saber como ela tinha se recuperado. Hoje, se for para ajudar, conto quantas vezes for necessário.
MC Você tinha acabado de se casar com o ator Marco Ricca. Como ficou a relação?
AE Ele foi um grande parceiro, de um amor enorme. Imagina, eu estava bem na profissão, fisicamente ótima, e seis meses depois que nos casamos, não levantava da cama. Fiquei morando com ele em São Paulo, onde me sentia livre, andava do jeito que queria e onde fui acolhida por amigos queridos, muitos do teatro.
MC Como se curou da depressão?
AE Com remédio e com a vontade forte de ser mãe. Logo que casei com o Marco, começamos a tentar, mas sempre que entrava um trabalho, a gente segurava. Demorei seis anos para engravidar, era uma frustração, uma dor enorme. Tínhamos duas saídas pensadas: inseminação e adoção. A minha irmã mais velha, Márcia, morava em Porto Alegre e estava amamentando meu sobrinho na época. Uma conhecida dela tinha tido um bebê, que precisava ser adotado. E ela falou: eu o amamento para você. Mas a novela estava na reta final, eu trabalhava muito, teria que ir para a casa da minha irmã, ficar com a bebê lá para começar a minha maternidade. Falei para o Marco: “não vai dar para ter um filho dessa forma”. Na mesma época, fiz um procedimento médico, uma desobstrução de trompa. Acabou a novela, fomos fazer um mochilão pela Espanha e combinamos de tentar a inseminação na sequência. Não precisou, voltei grávida do Felipe.
MC Mais de 20 anos depois, entende melhor os motivos que a levou a ficar deprimida?
AE Hoje, acho que não existe uma única explicação, mas acredito que há pessoas com mais propensão, como eu. Pode ser genético, pode ser excesso de sensibilidade. A sensibilidade pode ser conduzida para coisas positivas, mas conseguir detectar que ela está sendo conduzida para um lado negativo, isso é trabalho para adulto, só quem faz análise consegue. Eu fazia terapia desde os 19 anos, mas era muito nova.
MC Sua mãe também teve depressão?
AE Acho que sim, ela sofreu por ser mulher, por viver numa sociedade ainda mais machista que hoje. Minha mãe dava aula em escola pública o dia inteiro, sofria por deixar as filhas em casa. Quando eu tinha 12 anos, ela foi fazer faculdade. Ficava admirada de vê-la saindo à noite, mas meu pai não aprovava. A vida não foi fácil, mas ela foi uma guerreira com as situações mais difíceis da vida. Eu perdi minha irmã caçula [Cláudia] aos 31 anos. Ela era um ano mais nova.
MC O que aconteceu?
AE Ela morreu do coração, de uma hora para outra, em casa. Depois que faleceu, fomos entender que ela tinha uma síndrome que isso poderia acontecer na faixa dos 30 anos. A minha irmã tinha algumas diferenças desde nova. Mas diferenças delicadas, que na minha geração não se falava muito, só a família percebia certas dificuldades. Então, não chegou a ser uma surpresa. A síndrome era discreta, hoje é denominada como [Transtorno] do déficit de atenção, [Transtorno de personalidade] limítrofe, borderline e milhares de outros nomes. Mas, quando faz parte da nossa vida, não importa nome nenhum; é uma pessoa que você ama e que é diferente.
MC Ela tinha traços de bipolaridade, depressão?
AE Teve tudo isso ao longo dos 30 anos. Chegou a entrar na universidade, fez o primeiro ano de faculdade de administração, mas as coisas eram bem difíceis. Ela era um ano mais nova do que eu, meu xodó.
MC Que lembrança ficou dela?
AE Ausência. Quando lembro dela, vem a ausência. A gente quase não fala da minha irmã. Eu nunca dou entrevista, e quando dou, como não sou muito formal, acabo dizendo coisas que só falo na terapia porque nem na família tocamos no assunto. É delicado. As pessoas fogem da dor, né? Às vezes, não é nem dor, às vezes fugimos de nos emocionarmos, parece que não dá tempo de se emocionar, porque sempre há um compromisso. É filho, é preocupação com os pais, a gente vai fugindo.
MC O que mudou em você depois dessa perda?
AE Resgatei o vínculo com a minha família, ficamos grudados. Eles estão em primeiro lugar em tudo para mim. Sou muito maternal com meus pais, com a minha outra irmã e com meus filhos [Agnes, 20; Felipe, 18; e Vicente, 11].
MC Você e o Vladmir Brichta estão juntos há 14 anos juntos. Como ficou o sexo?
AE Acho que melhorou, ficou mais natural. E entendi que o casamento precisa desse namoro, precisa se entrelaçar. Um dos presentes do casamento é ter uma pessoa com quem você gosta de fazer sexo e que gosta de fazer sexo com você. Ninguém vai ter uma noite de amor deliciosa se brigou no café da manhã, se não aplaudiu o trabalho do outro, se não protegeu numa situação familiar difícil. Eu não quero essa relação. A hora do entrelaçar é consequência do carinho e do respeito do dia inteiro.
MC Como vocês mantêm o romance?
AE Há 14 anos, uma vez por semana, a gente se obriga a sair só nós dois. Eu gosto de namoro e o Vlad entendeu rapidamente que eu ia querer isso para o resto da vida. Se arrumar, sair, passear. Mesmo cansados, falamos “hoje é o dia”. Às vezes, saímos com amigos, mas não vamos a lugares com muita gente. Sou meio bicho do mato e o Vlad é megasociável, baiano. Temos um amigo que dá muita festa e diz “vocês nunca vêm!”. Mas quando faz algo pequeno, com umas oito pessoas, a gente vai. Ele fala: “Já entendi, com vocês tem que ser um grupinho menor”.
MC Por quê?
AE Não sei se é resquício de um pânico que vivi naquela fase da vida, da depressão, de lugar muito cheio. Não me sinto muito segura. E, já que posso escolher, escolho onde estou mais segura. Se tiver que dominar tantas funções, acho que fico meio apavorada. Mas sei que não preciso ficar, eu também me cobro muito. É que nem entrevista. O Vlad fala: “Meu amor, você toma banho, se ponha bonita e conversa. É só isso, só bater um papo”.
Fonte: Marie Claire