Adriana Esteves volta à tela da TV para sofrer, e bota sofrimento nisso: Fátima, empregada doméstica que vai presa por falsa acusação de tráfico, é uma das figuras-chave de Justiça, série de Manuela Dias, com direção-geral de José Luiz Villamarim, que estreia em agosto, na Globo. São 20 episódios com exibição de segunda a sexta – exceto quarta-feira, dia de futebol. Quatro personagens assumem a condição de protagonista, cada um em um dia da semana, e circulam nas histórias alheias quase como figurantes. Inovador em séries da emissora, o formato remete a filmes como Crash – No Limite (2005) e Short Cuts – Cenas da Vida (1993).
Fátima ocupa o foco da trama às terças. Vizinha do policial Douglas (Enrique Diaz), casado com a barraqueira Kellen (Leandra Leal), ela é funcionária de Elisa (Débora Bloch), personagem das segundas-feiras, que jura vingança a Vicente (Jesuíta Barbosa), assassino de sua filha, Isabella (Marina Ruy Barbosa). Assim como Fátima, Vicente fica sete anos na cadeia, o que acontece também com Maurício (Cauã Reymond), que atende ao último desejo de sua mulher, Beatriz (Marjorie Estiano), dançarina atropelada por Antenor (Antonio Calloni) que fica paraplégica e clama por eutanásia. A cadeia também é o destino de Rose (Jéssica Ellen), acusada de tráfico por portar uma quantidade de drogas para consumo entre amigos.
“Fátima”, conta Adriana em entrevista por telefone, “é uma mulher bastante simples”. “O marido (Angelo Antônio) é motorista de ônibus. Eles moram numa casinha com animais, cachorro, e em determinado momento, um policial vai morar ao lado dela e um cachorro dele mata os bichos deles. Chega um dia em que o cachorro ataca o filho pequeno e ela mata esse cachorro. Ela não seria presa por ter matado o cachorro, mas o policial coloca droga na casa dela e ela é presa, só sai da cadeia sete anos depois. Quando sai, o marido está morto. Não fica tão explicado ele ter morrido dentro da cadeia, e ela começa do zero.”
A estrutura da história de Manuela, diz Adriana, enfoca “aquele personagem muito forte, com roteiro realmente de série, e várias coisas são subentendidas”, podendo gerar “uma série de julgamentos”. “É aberto para o espectador pensar.” Villamarim, o diretor, endossa. Diz ao Estado que Justiça não é uma série para espectadores “passivos”, e sim “ativos”. O público vai descobrindo as camadas da história junto com seus personagens, quase como um “cúmplice”.
Estupro, eutanásia, homicídio de filho e tráfico de drogas compõem um leque nada leve para o histórico dos personagens que a autora Manuela Dias e o diretor José Luiz Villamarim enfileiram nos 20 episódios de Justiça, série com estreia prevista para depois da Olimpíada. E, como a cor dos temas é suficientemente forte, Villamarim encomendou a toda a equipe, da fotografia de Walter Carvalho, com quem divide o set, à maquiagem, passando por figurino e cenografia, o mínimo de filtros e adereços para o produto final.
“São dramas muito potentes, grandes questões humanas. Por isso, encomendei à minha equipe que tudo seja o mais simples possível, quase documental, hiper-realista, e o muito simples às vezes é muito difícil de fazer. É como se não maquiassem nada, não acentuassem nada. É sem filtro, sem adereço, isso é o que eu estou perseguindo. A palafita é palafita mesmo, os cenários são o que representam. Se eles são feios ou bonitos não é a questão, o importante é como a história esta sendo narrada.”
A série se passa toda no Recife, onde a equipe ficou por um mês e meio, antes de chegar aos estúdios, no Rio. Villamarim acredita que o enredo vá despertar identificação no público. Afinal, entre um murro no estômago e outro, a trama tem lá suas levezas, para que a plateia respire. “Eu me preocupo com isso”, endossa Adriana Esteves, a doméstica Fátima, personagem das terças. “Gosto do colorido, vão ter momentos de alegria”, ela avisa. Depois de sair da prisão, onde ficou por sete anos sem ser visitada por ninguém, “ela encontra um novo amor e tem o reencontro com os filhos”. “Isso é alegre, a Fátima é uma mulher com esperança, ela quer estar viva, ela não sobrevive a cada dia só por sobreviver”, completa a atriz.
Villamarim confirma. “No fundo, a vida é assim. Eu nem sei o que aconteceu na sua vida”, diz à repórter, “mas você deve ter vivido algum momento trágico e nós estamos aqui, conversando ao telefone de uma maneira tranquila. Se eu for aprofundar alguma coisa sua, eu posso falar só disso, mas a ideia é dar conta desse cotidiano, como a nossa vida é”.
“Como a nossa vida é”, convém esclarecer, não remete ao tom rodriguiano de “a vida como ela é”, avisa Villamarim. “Aquilo é mais teatral, aqui, não. Aqui é cru, a ideia é fazer uma coisa seca, simples, a ideia é que a câmera desapareça, que até eu desapareça, sem maneirismos, sem acentuar nada, esse é o meu desejo.”
As levezas que fazem a narrativa respirar, para ele, são consequência quase orgânica de uma obra que vê como algo muito nosso. “A gente é brasileiro e o brasileiro é esperançoso, essa é uma obra muito brasileira, que ativa as emoções. A gente gosta do drama, está no nosso DNA. Acho que quem assiste às cenas é muito afetado, são histórias que tocam profundamente na gente, e há uma identificação. Como não estou conduzindo a direção para virar melodrama ou tragédia, não estou acentuando isso, não estou reverberando isso, fica tudo de um tamanho normal.”
Se há algo não tão orgânico na produção é a ordem referente ao cronograma de gravações. Como todos os personagens são vistos com sete anos de diferença ao longo dos 20 capítulos, o ideal seria gravar todas as cenas pré-prisão dos condenados antes e todas as cenas pós-prisão depois dos sete anos. Mas a urgência da produção não permitiu tal luxo. Como havia esse espaço para a série na grade de programação entre agosto e setembro, e o projeto foi aprovado recentemente, faltou prazo para o que seria ideal. “O sonho nosso era filmar a primeira fase, demorar muito tempo e só depois gravar a segunda”, admite Villamarim. “Como o início é pequeno, a gente só perde um pouco na caracterização.”
Os truques físicos ajudam, mas Adriana também reconhece que seria muito melhor poder representar Fátima antes e depois da prisão na ordem cronológica. “Como a gente tem que gravar as duas fases às vezes no mesmo dia, a mudança fica muito por conta do trabalho sensível da nossa criadora, que é a Lu Moraes, sobre alguns detalhes que são mais do personagem quando jovem e outros que não são”, fala.
Villamarim menciona que as mudanças físicas também não são tão grandes para um período de sete anos, embora as transformações operadas nessas personagens sejam extremamente profundas nesse intervalo retratado na série. “Isso a gente jogou na memória de afeto, a gente ficou muito na memória, no que foi afetado, ‘qual é a memória do afeto de cada personagem?’: isso virou um gancho na direção dos atores”, ele explica.
No quesito preparação de atores, Adriana reforça o reconhecimento sobre a grande evolução que os trabalhos dramatúrgicos alcançaram na Globo, de dois anos para cá, com um aquecimento que tem sido essencial para o bom entrosamento dos atores desde o primeiro dia de gravação. “Isso virou um projeto da empresa. Quando começamos a gravar, já estão todos mais unidos, como no teatro”, compara a atriz.
A preparação de elenco veio de Chico Accioly, “um grande amigo de longa data, do teatro”, ela conta. “Ele tem um método dele, baseado na conversa, que chega quase a uma sessão de terapia. Sou uma atriz que não racionaliza muito, embora eu faça uma pesquisa imensa sozinha, e com a internet é uma delícia porque você acha tudo. A gente passou um mês e meio no Recife, e é muito legal sair da nossa cultura e ir para um outro Estado, onde a série vai ser contada. Uma noite, durante as minhas pesquisas na internet, caiu nos meus olhos uma coisa que eu não tinha visto ainda, a Dona Silvia, documentário sobre uma vendedora de quentinha no (Complexo do) Alemão, uma heroína do Alemão. A minha personagem é uma vendedora de quentinha, uma mulher cheia de ética que não se corrompe, isso faz todo sentido. As pessoas vão se emocionando com aquilo.”
Justiça é o primeiro trabalho de Adriana com Manuela Dias, escritora em franca ascensão na Globo, mas a direção de Villamarim, Adriana conhece bem, desde o set de Avenida Brasil, novela cujo sucesso é, segundo o próprio autor, João Emanuel Carneiro, um mérito de Carminha, a vilã vivida por Adriana. E é melhor voltar para a casa depois de exorcizar as maldades no set, como Carminha, ou depois de sofrer como Fátima? “Eu acho delícia fazer uma personagem mega do bem”, fala. “É bom fazer coisas do bem, quem sabe a gente não estimula quem está vendo? Mas eu fazia Avenida Brasil e vinha para casa feliz”, lembra. “O que me instiga é trabalho inteligente, não importa se é vilão, se é herói, mas que vise ao máximo da nossa inteligência para compor aquilo, que não subestime a nossa inteligência, é criatividade, elegância.”
Diretor José Luiz Villamarim aposta que a escalação de atores conhecidos estimule o público a assimilar a ordem da narrativa, inovadora para séries da Globo. Às segundas, por exemplo, o fato de Adriana Esteves surgir como figurante na história focada em Elisa (Débora Bloch), instigará o telespectador a conhecer a vida daquela personagem na terça, assim com os demais protagonistas.