Ponto de Vista (do original Amy´s View), que estréia hoje no Teatro Faap, com Beatriz Segall, Marcello Antony, Adriana Esteves, Myriam Pires, Luiz Baccelli e Bruno Costa, é um tabuleiro de xadrez em que os personagens se movimentam por 16 anos entre trevas e luzes. O centro do questionamento do texto de um dos maiores dramaturgos vivos da cena contemporânea, o inglês David Hare, escrito em 1997, é o próprio teatro, em confronto com artes mais recentes como o cinema e a mídia televisiva. Beatriz Segall, produtora do espetáculo e introdutora da obra teatral de Hare no Brasil, acalenta a montagem dessa peça cara há quatro anos – são seis personagens e quatro atos passados em dois cenários luxuosos. A peça leva a assinatura de José Possi Neto na direção e de Jean Pierre Tortil, na cenografia. A tradução é da escritora Lya Luft.
Escorada agora por Alexandre Dória na produção, Beatriz deu curso livre à composição da Esme Allen, a protagonista da peça de Hare. Viúva de um grande artista plástico, Esme é uma grande atriz de teatro enfrentando as vicissitudes do declínio. Ao conhecer o futuro genro Dominic (Antony) na casa da sogra Evelyn (Myriam Pires), localizada nos arredores de Londres, trava com o jovem editor de uma revista de cinema e aspirante a cineasta uma carregada defesa do teatro e dos valores ocidentais que devem permear o fazer artístico. No centro dessa luta apaixonada está a doce Amy, cujo ponto de vista favorece um discurso tão simples quanto poético: a “incondicionalidade do amor”. “Cada personalidade nesse texto é muito forte, o que possibilita um grande exercício de atuação para todos”, atesta Segall.
E o mais interessante é que, como grande autor, Hare cria uma peça densa, com várias camadas de discussão, mas sem maniqueísmo; em momento nenhum ele toma partido”, ressalta. Para o diretor José Possi Neto, a peça é uma comédia ácida e moderna, com um tom chekhoviano pairando sobre os atos. “Mãe e filha se dão bem na peça, têm uma relação bem resolvida. Por isso, não se trata de um conflito de gerações, mas de idéias sobre mundos diferentes: a célula familiar onde sensibilidade, honra e respeito são pilares fundamentais, e a presença de um jovem sem raízes, perfeito representante do mundo contemporâneo.” Dominic tem 22 anos quando a peça começa. ”
Ele é órfão, ambicioso, projetado para o futuro, sedento por sucesso”, resume Marcello Antony. “Dominic entra em choque com Esme, que enfrenta naquele momento a decadência na carreira. O embate de Dominic com Esme, que respeita valores morais, como colocar a arte acima de qualquer outro valor, é maravilhoso, porque o autor, por meio de Dominic, analisa criticamente o teatro com as armas do próprio teatro.” Adriana Esteves ressalta ver em Amy “o crescimento da menina para a mulher, com tudo o que isso acarreta de dor”. “Mas para Amy, a grande transgressão é o amor”, sintetiza a atriz.
Os outros personagens são Frank Oddie (Luiz Baccelli), agente de Esme e apaixonado por ela e, Toby Cole (Bruno Costa), jovem ator que surge no quarto e último ato, cujo cenário é o camarim de um teatro, o Victorian West End. “Toby representa a intersecção entre os mundos de Dominic e de Esme”, diz Costa. O enredo move-se aos saltos que vão do ano de 1979 até meados da década de 90. Nessa passagem do tempo, Dominic e Esme têm discussões cáusticas – os diálogos de Hare são brilhantes – sobre a integridade da arte, a necessidade de preservação dos valores acima de qualquer interesse pautado/estimulado pelas mídias, o marketing como lei, a importância do sucesso, a raiz do confronto entre a palavra e a imagem (ou o teatro e o cinema).
Porém, o tempo, senhor absoluto das mudanças, também oferece sua pátina aos personagens e eles sofrem mudanças radicais. Evelyn, por exemplo, a sogra de Esme, é metáfora da dissolução do passado, dos valores do mundo moderno que vão se apagando. “Ela já está esclerosada no terceiro ato, antes de morrer”, conta a veterana atriz Myriam Pires. Ponto de Vista. De David Hare. Direção José Possi Neto.
