O roteirista/diretor Caio Sóh foi o responsável por “Teus Olhos Meus”, “Minutos Atrás” e “Por Trás do Céu”, três pérolas recentes do cinema nacional que infelizmente poucos brasileiros conhecem, histórias contadas com tremenda sensibilidade, imperfeitas, porém, corretas. “Canastra Suja” é seu melhor trabalho até o momento, apesar de coerente artisticamente com os anteriores, ganha força exatamente negando a sensibilidade, especialmente na poderosa segunda metade, sem concessões ou alívios cômicos, conscientemente agressiva na crítica social que retira brutalmente o véu de hipocrisia que envolve a família do casal Maria (Adriana Esteves) e Batista (Marco Ricca). As atuações naturalistas em longos planos sequenciais captados com câmera na mão, toque perceptível já nas cenas iniciais, reforçam ainda mais este impacto. Em uma das cenas mais tensas, próximo do desfecho, quando vemos um personagem sendo submetido à humilhação extrema, a câmera mostra a capa de dois livros: “Intérprete de Males” e “A Arte de Pedir”, ambos refletem sobre a necessidade de negar o orgulho e pedir ajuda, em suma, aceitar que não somos autossuficientes, tema central do filme.
Uma das metáforas visuais mais interessantes é a do muro da casa, constantemente utilizada como tela para o extravasamento do ódio em pichações invariavelmente escritas com erros ortográficos (aqueles que acusam são tão, ou mais, falhos que os alvos). O pai, ao invés de genuinamente se esforçar para melhorar, apenas cobre as palavras com tinta branca. É impossível apagar, o remendo atrai ainda mais atenção. Todos os conflitos, quase sempre à mesa das refeições, são travados pela voz angustiada da mãe: “Senta para comer”, como se dissesse “vamos fingir que somos uma família normal”, desesperada em manter o ritual. Em seu rosto, máscara de dor, a plena consciência de que será incapaz de evitar que tudo se desmorone, alicerces que provavelmente começaram a ruir no momento em que ela calou um erro pela primeira vez. A sua fuga do caos é representada pelo fisiculturismo que pratica quando ninguém está olhando. Já que não consegue controlar a própria vida, ela psicologicamente se foca na modificação mais simples, buscando a alegria fugaz proporcionada pelos exercícios físicos, a ilusão de que se pode combater e vencer a deterioração natural. A fuga do marido é a bebida, que, obviamente, potencializa as suas frustrações existenciais e expõe seu caráter sem filtro.
A filha Emília (Bianca Bin), graciosa à luz dos holofotes urbanos, utiliza sua virgindade como moeda de troca com seus pretendentes. Já Pedro (Pedro Nercessian), seu irmão, encontra tremenda dificuldade em suportar o padrão simples que sua condição financeira permite, ele não pensaria duas vezes antes de aceitar qualquer lance ilegal que modificasse radicalmente seu estilo de vida. Sem revelar muito e estragar a experiência, vale ressaltar que o roteiro aos poucos vai mostrando que, com exceção da filha caçula autista Rita (Cacá Ottoni), símbolo de pureza acidental, todos os participantes deste microcosmo são essencialmente cruéis, não por culpa do sistema, eles não são levados às atitudes doentias, a alegoria evidencia que é um comportamento natural. Os seres humanos são controlados pelas leis, pelos dogmas religiosos, por conceitos de ética e justiça, mas, em seu cerne, são selvagens como seus ancestrais.
Atuações impecáveis, roteiro corajoso e ousado naquilo que se propõe, ótima noção de ritmo, estilizado coerentemente desde os créditos iniciais com o leitmotiv das cartas de baralho (a vida como jogo de azar), e, mérito ainda raro em nossa indústria, dirigido com segurança. “Canastra Suja” é, até o momento, o melhor filme nacional do ano.
Fonte: https://www.devotudoaocinema.com.br/2018/07/canastra-suja.html