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Crítica – Bingo: O Rei das Manhãs (Rapsódia Boemia)

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Levemente baseado na história real de Arlindo Barreto, um dos intérpretes do palhaço Bozo na década de 80, este Bingo: O Rei das Manhãs é uma típica história de ascensão, queda e redenção de um artista. A trama é centrada em Augusto (Vladimir Brichta), um ator de filmes eróticos que tenta fazer carreira nas telenovelas. Rejeitado pela emissora Mundial, a maior do país, ele tenta a sorte em uma emissora concorrente. Lá ele consegue um teste para ser o protagonista de um programa infantil, o palhaço Bingo (o nome Bozo não pôde ser usado por questões jurídicas). Ele consegue o papel e se torna um sucesso, mas o fato de que seu contrato proíbe a divulgação de seu nome como intérprete do palhaço começa a pesar em Augusto, que se afunda em drogas e bebidas.

A narrativa se beneficia ao explorar o contexto da televisão brasileira da época ao abordar a hegemonia quase que absoluta de uma única emissora que sozinha podia dizer o que faria ou não sucesso. Uma rede de televisão que podia condenar alguém ao ostracismo e esquecimento simplesmente porque parava de mencionar o nome de um ator quando ele deixava seus corredores. A Mundial é claramente um simulacro da Rede Globo (até o logo é parecido), provavelmente alterando o nome para evitar maiores problemas, que ainda hoje ocupa um lugar hegemônico no campo televisivo e exibindo práticas semelhantes às da empresa fictícia do filme, o que torna ainda mais relevante.

Em relação ao contexto de produção televisiva dos anos oitenta, o filme também coloca em pauta a erotização de conteúdos que deveriam ser infantis. A trama menciona e mostra uma concorrente de Bingo (claramente inspirada no antigo programa da Xuxa) usando roupas curtas e o palhaço decide trazer a cantora Gretchen (Emanuelle Araújo) para cantar e rebolar no seu programa de modo a aumentar a audiência. Gretchen, por sinal, é uma das poucas celebridades a serem nominalmente citadas no filme.

Há também uma reflexão sobre a natureza e função do humor. As cenas em que Augusto treina com um palhaço de circo ajudam a compreender a importância do humor como ferramenta de crítica e subversão social. Para os personagens do filme, o humor só tem sentido se subverte a ordem das coisas, se ridiculariza aqueles que tem força e poder para assim mostrar suas fragilidades e através do escárnio questionar essa posição de aparente superioridade. É exatamente isso que Augusto com seu produtor americano em seu teste para Bingo e também com o menino metido a valentão que atormenta outro menino da plateia. Em tempos nos quais muitos “comediantes” querem fazer graça simplesmente endossando o status quo e repetindo preconceitos anacrônicos, é importante pensar no que a piada está a serviço.

Boa parte dessas ideias está concentrada na metade inicial da trama e do meio para frente é um conto bem típico sobre uma celebridade que destrói a carreira e relação com o filho por conta de um vício. O ponto mais interessante da trajetória de Augusto reside na questão do reconhecimento e da identidade. O sucesso, afinal, não é dele e sim do palhaço e Augusto permanece um sujeito anônimo a despeito dos prêmios e da alta audiência. Esse deslocamento de identidade (o palhaço é ele, mas não é reconhecido como tal) gera um conflito interno no personagem e acaba sendo um dos motivos de seus problemas com drogas.

Vladimir Brichta é bastante competente ao sinalizar o tormento interno do personagem e dos problemas de autoestima causados pela falta de reconhecimento do seu trabalho. O ator também traz uma energia intensa e insana para as cenas envolvendo seus excessos com drogas e os momentos dele alucinado e com sua maquiagem de palhaço ocasionalmente pendem para algo sinistro. O ator também tem uma ótima química com o garoto que interpreta o filho de Augusto, trazendo sinceridade para a relação mesmo quando o roteiro não vai além dos lugares comuns neste tipo de história ao abordar a relação dos dois.

O próprio vício em drogas de Augusto é apresentado de maneira relativamente abrupta pela trama. Não há nenhuma menção a qualquer consumo de drogas ou a um estilo de vida de excessos (ele inclusive quer deixar de atuar em filmes eróticos) e de repente o vemos em seu camarim com um amigo, duas mulheres e várias linhas de pó. Essa transição para uma vida de exagerados não soa como algo construído e sim como um elemento que simplesmente aparece na trama. O estado alterado do personagem é ressaltado pela fotografia que muitas vezes traz um leve desfocado às imagens, como se estivéssemos vendo um flashback, sonho ou delírio (e algumas vezes são delírios) e também pelo trabalho de câmera, com giros e enquadramentos tortos feitos para ressaltar a perspectiva distorcida do protagonista. Apesar disso, não chega a ser tão surtado e delirante quanto o roteiro acha que é, faltando a porralouquice e intensidade de filmes como O Lobo de Wall Street (2014). Ocasionalmente certas escolhas estilísticas soam excessivas e desnecessárias, como a cena em que a câmera sai da janela do apartamento de Augusto rodopia no ar por um momento até chegar na janela de um hospital.

Apesar de alguns defeitos, no entanto, Bingo: O Rei das Manhãs é um competente estudo de personagem beneficiado pelo trabalho de Vladimir Brichta e sua exploração dos bastidores da televisão brasileira.

Nota: 7/10

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