Ensaio sobre a bestialidade nossa de cada dia, Mundo Cão, thriller de vinganças à luz de contradições sociais, exibido no sábado na Première Brasil, marcou a volta do diretor paranaense Marcos Jorge à boa forma de seu primeiro e premiado longa-metragem: Estômago (2007). Embora prejudicado por um emprego excessivo de trilha sonora, mesmo em momentos intimistas carentes de silêncio, o filme esbanja vigor no roteiro de Lusa Silveira, cuja estrutura sinuosa amarra pontas soltas e semeia viradas com discrição, sem se sobrepor a uma discussão quase existencial sobre fracos versus fortes e sobre vitimização.
Seu universo da violência é, uma vez mais, discutido pelo cineasta a reboque de uma microfísica do Poder: de um lado, um funcionário do Departamento de Controle de Zoonoses (vulgo Carrocinha) de São Paulo, Santana (Babu Santana, em mais uma atuação primorosa); do outro, um ex-policial corrupto, hoje barão do mercado de caça-níqueis, Neném (Lázaro Ramos, perfeito no limite entre a vilania e docilidade). Com base nessas duas figuras, Jorge promove uma discussão sobre o descontrole da segurança em espaços urbanos antenados com reflexões recentes do cinema latino, em especial o mexicano Zona do Crime (2007), de Rodrigo Plá, e o chileno Matar a un Hombre, de Alejandro Fernández Almendras.
Nos filmes de Jorge, há sempre dois hemisférios que colidem e se digladiam numa oposição de forças de início desleal. Em Estômago, um prisioneiro dócil, de obediência quase bovina, passa por uma educação pela pedra nas mãos de um chefe do crime até passar de cordeirinho a ave de rapina.
Em Corpos Celestes, de 2009, codirigido por Fernando Severo, um físico que desaprendeu a amar é confrontado com a criança amorosa que um dia foi para se reinventar, num embate entre passado e presente. E em O Duelo (2014), um marinheiro cheio das bravatas entra em queda de braço com um contador de histórias profissional para ver que verdade vingará no tempo, passando de um falso heroísmo a um presente de glórias reais.
Com seu timbre de suspense, Mundo Cão se embrenha pelas mesmas veredas: logo, reitera um caminho autoral para o realizador de Curitiba. Só que aqui o caminho é vitaminado por uma ambição visual maior. Planos exuberantes da paisagem paulistana, dos subúrbios ao centro da metrópole (sobretudo o de um estádio lotado para um partida do Palmeiras), alimentam o filme visualmente na paleta precisa de Toca Seabra. A partir dela se desenha a rivalidade entre dois homens, que vai além do medo e da razão, num enredo que, por vezes, parece perder o tom, gravitando de uma tragédia quase melodramática ao humor negro, porém acaba encontrando harmonia e retidão, numa montagem capaz de enervar.
Entre capturas de cães raivosos pelas ruas e ensaios roqueiros em sua bateria de fundo de garagem, Santana vive uma rotina alegre com a mulher, Dilza (Adriana Esteves), e os dois filhos. É uma vida pacata, mas de prazeres e responsabilidades doces. Mas uma ação corriqueira, de sacrificar um cachorro bravo que andava solto pelas ruas, mudará seu destino. O animal era patrimônio de Neném, criador de cães que utiliza os bichos para agredir seus desafetos e testar a lealdade de seus asseclas. Ao saber que Santana matou seu totó favorito, ele decide sequestrar o filho mais novo do pacato algoz. A partir daí, a paz se torna um sujeito oculto na gramática diária do “homem da Carrocinha”, até que este reage e passa do plano dos coitados para o plano dos opressores.
É dessa dicotomia que é feito o cinema de Marcos Jorge e, a partir dela, ele vagueia por universos por vezes ignorados mesmo nos mergulhos do cinema na periferia. Aquela retratada em Mundo Cão não é o planisfério da favela, nem o do asfalto. É uma zona intermediária, de uma classe mais pobre, que se equilibra entre empregos assalariados e bicos (Dilza vende calcinhas). O Neném vivido por Lázaro também alcança tridimensionalidade, demonstrando afeições em meio à sua postura rude.
É, portanto, um filme sólido, que consolida a trajetória autoral de Jorge e sua parceria com Lusa em diálogos que traduzem brutalidade, inquietação e o senso de revanche.
Fonte: omelete.uol.com.br/filmes/criticas/mundo-cao-1/?key=101022