Lançada no Festival de Curitiba, no fim de março, a comédia dramática Tudo chegou ao Sesc Bom Retiro na sexta, 2, depois de uma bem-sucedida temporada carioca que azeitou pequenas falhas percebidas nas apresentações iniciais.
“Cortamos quase 20 minutos da segunda história e conquistamos uma objetividade na discussão religiosa apenas rascunhada na terceira parte”, admite o diretor Guilherme Weber, responsável pela adaptação do texto do argentino Rafael Spregelburd, que ganhou a cena no Paraná com apenas 45 dias de ensaios.
A peça, protagonizada por Julia Lemmertz, Vladimir Brichta, Dani Barros, Claudio Mendes e Márcio Vito, apresenta três fábulas em que o fantasma do dinheiro coloca em xeque o equilíbrio emocional dos personagens. Cada trama é norteada por uma pergunta que jamais ganha resposta, “por que o Estado se torna burocracia?”, “por que toda arte vira negócio?” e “por que toda religião vira superstição?”.
Conhecedor da dramaturgia de Spregelburd, Weber reconheceu a urgência de montá-lo e entender como tais questões seriam interpretadas pelos brasileiros. “Nós somos a lente de aumento de todos os desejos e medos da América Latina, tudo aqui ganha outra proporção, ainda mais em um momento de polarização como esse”, diz.
Na primeira cena, Weber construiu uma vigorosa alegoria em torno de uma repartição pública na qual Julia, Dani, Brichta, Vito e Mendes interpretam funcionários sufocados pela rotina, com gestos repetidos e um discurso robótico. A grande virada acontece quando um deles toca fogo em uma cédula de dinheiro e, em um gozo coletivo, todos descobrem uma nova adrenalina. “O ato de queimar dinheiro vira uma liberdade impossível”, comenta o diretor.
A presença de um artista plástico (interpretado por Brichta) acaba com a tranquilidade de uma ceia de Natal na segunda parte, mais verborrágica. Polêmicas sobre quanto vale monetariamente um trabalho intelectual geram um mal-estar entre os presentes, reforçado por um burocrata conservador (representado por Mendes). “O autor promove uma discussão provocativa e, como meu personagem é bastante anárquico, o discurso chega ao público com cumplicidade e diversão”, define Brichta.
Por fim, um clima de tragédia grega se instaura entre um escritor de livros infantis (Brichta) e sua mulher (papel de Dani) aterrorizada diante da crença de que uma maldição pode atingir o filho recém-nascido.
“Enxergamos ali uma moeda de troca entre o terror e obediência por meio de pessoas treinadas para aderirem à fé sem ter fé em coisa alguma”, ressalta Weber. Brichta acrescenta que a religião pode trazer conforto e cumplicidade, mas também desencadeia perseguições e catástrofes.
O que mais chama a atenção de Weber, no entanto, é a consistência dos personagens de Spregelburd, capazes de se sobreporem ao teatro de ideias e, por isso, gerar imediata identificação da plateia. “É pelo drama dos personagens que o público reconhece os seus anseios”, observa ele. “O caráter de fábula torna mais evidente essas perdas dos valores e evidencia as proporções de uma crise evidente.”
Foto: Flávia Canavarro