Vou contar um spoiler que não é exatamente um spoiler… Em uma das (muitas) cenas sensacionais de Bingo – O Rei das Manhãs, o palhaço que animava a garotada em um programa matutino no pântano que era a TV brasileira dos anos 80 descobre que bateu a concorrência, que está em primeiro lugar na audiência! A “celebração” não poderia ser mais bizarra, com suas feições alegres e coloridas (é um palhaço, oras) assumindo um ar meio maligno, dizendo não tão sutilmente pra chefia do adversário poderoso o quanto eles perderam quando lhe deram uma banana, para finalmente terminar o “discurso” pisando numa boneca estilão Barbie, de roupa prateada, símbolo perfeito da “vênus platinada” acostumada com o topo do pódio. É só um dos vários momentos em que o filme de Daniel Rezende pega fogo, transcendendo a preguiça generalizada que tomou conta do cinemão brazuca e fazendo de Bingo um dos filmes mais sensacionais do ano – e o melhor brasileiro em uma década.
O filme é, escancarando o verbo, exatamente o que o cinema nacional precisa para engatar uma segunda e voltar a significar alguma coisa – qualquer coisa! Malandro e envolvente, Bingo tem sangue nos olhos, tem pulso, traz uma visão clara do que quer ser e de onde quer chegar. Principalmente: é cinema de verdade, não tese sociológica furada ou filme pra “lacrar”, usando o verbete descolado da vez. Rezende, montador indicado ao Oscar por Cidade de Deus, que traz no currículo a fluidez e o ecletismo de O Ano Em Que Meus Pais Saíram de Férias a Tropa de Elite a RoboCop, chega ao novo trampo colocando moral e vigor de veterano, como se a direção fosse um elemento em seu DNA gritando para ser expressado. Ele encontrou na vida do primeiro Bozo da televisão brasileira, Arlindo Barreto, a mistura de tragédia e comédia perfeita para arrancar uma história tão fantástica que parece ficção. Como pano de fundo, ele pincela os bastidores da TV brasileira dos anos 80 com todos os excessos de uma época, honestamente, menos careta do que este novo século cheio de patrulhas.
Em outras palavras, “sexo, drogas e rock ‘n’ roll” define bem a vida de Augusto Mendes, ator de pornochanchadas frustrado que, numa destas viradas improváveis que a vida teima em dar, termina como intérprete do um personagem infantil que já fazia sucesso nos Estados Unidos há uma década, e que preparava-se para ganhar versão nacional: Bingo. No papel de Mendes, o baiano Vladimir Brichta abraça uma interpretação carregada de malícia, dando vida a um sujeito de fé inabalável em seu próprio talento, alguém com fome de reconhecimento que termina como o sucesso invisível por trás da maquiagem do palhaço da TV. Assim como o Bozo na vida real, o Bingo do cinema jamais pode revelar sua identidade, preso a um contrato leonino. Essa balança entre vaidade e responsabilidade é equilibrada num coquetel de cocaína e álcool, fama e frustração, que revela o poder devastador da fama.
O roteiro de Luiz Bolognesi é esperto ao não cair no clichê da “biografia do artista atormentado”: Mendes já abraça os excessos muito antes de se tornar Bingo. A fortuna súbita potencializa sua inabilidade em achar espaço em em sua vida para atender aos anseios da mãe, uma diva decadente que fora sucesso eras atrás (interpretada com um distanciamento certeiro por Ana Lúcia Torre), e dar atenção a seu filho (Cauã Martins), Brichta abraça todas os conflitos com fúria, fazendo de Mendes/Bingo um personagem complexo e completo, longe da caricatura que assombra boa parte das cinebiografas nacionais. Melhor ainda: como Bingo é uma obra de ficção, ainda que inspirada pela vida de Arlindo Barreto, seus criadores não se viram confinados a retratar os fatos como eles foram. Mesmo que as partes mais absurdas da história sejam justamente aquelas que traduzem quase literalmente passagens da vida de Barreto.
Tecnicamente, Bingo é um primor, com um trabalho de luz e câmera belíssimo e uma segurança narrativa que parecia ausente das telas nacionais. Enquanto muitos filmes tentam disfarçar seu amadorismo com um véu de “modernidade”, em histórias que não se sustentam sequer para escrever uma sinopse, Daniel Rezende mantém o pulso firme e não apela para firulas vazias ou desculpas estéticas. O que surge com mais força em seu filme é a vontade de contar uma boa história e de desenvolver personagens críveis e complexos. Pode parecer fácil, mas quando uma geração inteira parece acreditar que cinema não tem obrigação de ser compreendido, e sim de ser “sentido”, é para aplaudir com gosto um diretor que entende a importância de narrativa, conflito e dilemas – pilares para qualquer criação audiovisual que tem pretensão de ser chamado de cinema.
Que tudo isso esteja nas mãos de um palhaço, tanto melhor! Bingo – O Rei das Manhãs já chega com os dois pés na porta, entregando um drama sobre pessoas de verdade que nunca esquece que também é cinema – e que cinema precisa ser, já pedindo perdão por apontar o óbvio, cinematográfico. É o casamento de imagens e som, de atores e técnicos, de uma boa história e um bom narrador por trás das câmeras, que se materializa como filme. A receita pode parecer simples, mas costurar tudo de maneira criativa e empolgante dá um trabalho danado. Mas Bingo, liderado por Daniel Rezende e Vladimir Brichta, aponta o caminho. Não é demais esperar que esse bicho arisco chamado “cinema brasileiro” o siga. Certo?
Fonte://robertosadovski.blogosfera.uol.com.br/2017/08/24/sem-palhacadas-bingo-o-rei-das-manhas-revela-o-poder-devastador-da-fama/