Osmar gosta de pensar si mesmo como um deus grego de pequenas tarefas e poucos atributos. Em nada se identifica com Cronos, o deus do tempo, ou Zeus, o deus dos deuses. Está mais próximo de Ilítia, a deusa dos partos, realizando funções que, embora relevantes, não encantam olhos alheios e desembocam numa rotina de mesmices miseráveis.
Ao lado de seus colegas de trabalho, que também gostam de se ver como divindades do Olimpo, o personagem norteia uma das histórias de “Tudo”, que chega ao 30º Festival de Teatro de Curitiba nesta sexta (1º), com Julia Lemmertz, Vladimir Brichta, Dani Barros, Márcio Vito e Claudio Mendes no elenco.
Dirigido por Guilherme Weber, o espetáculo traz um típico enredo da dramaturgia de Rafael Spregelburd, repleta de reflexões e críticas a instituições e valores que moldam esferas sociais como família, práticas religiosas, estratégias políticas e bases ideológicas.
Como o próprio nome sugere, “Tudo” traz uma narrativa extensa que tenta pincelar várias facetas de uma mesma história. Com quase uma hora e meia de peça, o enredo questiona as funcionalidades da burocracia, do dinheiro, do Estado, da fé e das artes.
“Desde que li o texto, quis trazer ‘Tudo’ para a ótica brasileira, entender o que seria essa história num país onde temos um povo desesperado por pertencimento”, diz Weber. “Na peça, por exemplo, temos um personagem subsidiado por grandes bienais e instituições culturais, e vemos surgir uma discussão sobre a arte enquanto negócio. De certa forma, há espelhos [apontados para a realidade]. Quem nunca ouviu falar em ‘artista vagabundo mamando nas tetas da Lei Rouanet’?”
A obra é uma comédia dramática de três fábulas -ou quase isso, já que seus protagonistas não são animais, mas sim seres humanos. “Toda fábula apresenta uma grande crise, e é nesse sentido que ‘Tudo’ se insere no gênero”, explica o diretor.
A primeira história mostra um pequeno grupo de funcionários de uma repartição pública se imaginando como deuses do Olimpo; a segunda acontece durante uma ceia de Natal cheia de debates filosóficos; e a terceira tem um escritor vendendo histórias infantis, enquanto sua esposa permanece em casa, aterrorizada com a possibilidade de seu bebê morrer.
O espetáculo, que faz sua pré-estreia nesta sexta, é um dos destaques do Festival, que começou nesta terça (29), com “G.A.L.A.”, monólogo de Gerald Thomas que traz uma mulher, vivida por Fabiana Gugli, sozinha num barco à beira do naufrágio durante a pandemia.
“Estrear ‘Tudo’ no Festival é muito significativo, não só por ser o lugar que costura a carreira de todo o elenco, mas também por marcar a retomada [do teatro na pandemia]”, afirma Brichta. “Tem um gosto especial para todos nós.”
Foto: Reprodução