No ar na novela Renascer, da TV Globo, como o Egídio, e como o Tomás, da série Pedaço de Mim, da Netflix, o ator Vladimir Brichta reflete sobre assédio sexual e machismo, temas delicados e necessários que, por meio de seus personagens, ele aborda nas duas produções.
O Egídio, da novela Renascer, e o Tomás, da série Pedaço de Mim, são homens com atitudes horríveis. Como é estar no ar com dois vilões de uma vez?
Este ano, digamos que estou interpretando personagens dignos de lástima, né [risos]? Pois é, o Egídio é terrível, já deu as caras, mas é um universo quase místico. Em Pedaço de Mim tem uma linguagem até mais realista, ele é um personagem mais dúbio, mas que também demonstra bastante egoísmo. Tanto o Tomás como o Egídio vêm de um lugar muito privilegiado, eles têm dificuldade em se colocar no lugar do outro, de ter empatia, são mimados, tem essa similaridade entre eles, mas são histórias muito distintas.
Em ambas as produções, você tem cenas mais pesadas. Mexe com você gravar esse tipo de sequência?
As situações mais delicadas são as de assédio, né? O assédio sexual, esse lugar de abuso é delicado. Faço com prazer porque é meu trabalho, tem um distanciamento e não fico sofrido. Mas sei que estou tocando em pontos muito delicados, então acabo tendo uma atenção maior, um foco redobrado para que isso seja feito de forma a não soar leviano, sabe, e que, ao mesmo tempo, as pessoas possam assistir, se comover com aquilo, e de alguma forma levar um pouco pra vida essa discussão, para que a gente veja cada vez menos isso acontecer.
E é importante porque, além de entreter educa, alerta sobre a importância de denunciar o assédio…
Sim! O principal objetivo de uma novela é fazer com que o público sonhe e esqueça um pouco o dia, se desconecte. A gente faz isso quando coloca na novela, num filme, quando escuta uma música. As paixões, o ódio, a inveja, os ressentimentos, tudo isso faz parte de uma boa novela, mas, eventualmente, as novelas também se prestam a serviço de contar histórias e abordar alguns temas que são relevantes no debate público. Claro que uma novela não muda uma sociedade, mas ela pode reverberar o que a sociedade está discutindo e o que ela precisa discutir.
Pedaço de Mim começa a história em 2006. Acha que em 2024 o Tomás agiria da mesma forma ao saber que a Liana (Juliana Paes) foi abusada e espera um filho do estuprador?
Infelizmente é possível que sim. Eu não tenho contato com os números precisos sobre o nível de violência de abusos que ocorrem hoje em nossa sociedade, mas a diferença de hoje para 2006 acho que é porque hoje as coisas têm nome, né? A gente ainda tem uma série de violências, de abusos, de preconceitos por aí que as pessoas cometem desde sempre, mas hoje com a diferença que a gente tem nome.
Como assim?
Em 2006, 1996, as pessoas diriam assim: ‘É um homem com muita personalidade, ele é um pouco nervoso’. Hoje você sabe que ele é um cara tóxico, violento, abusivo, então a gente consegue dar nome. Esse é o primeiro passo para uma correção futura. Mas isso ainda é uma coisa lenta e é muito difícil que o indivíduo consiga mudar tão claramente em dez anos. A minha fé, pelo menos, é geracional, acho que as próximas gerações virão melhores. Esse personagem, até para a dramaturgia existir, tem que ser essa figura que vai se mostrando tóxica com o passar do tempo. É óbvio que se você fica sabendo que a mulher que você gosta transou com outra pessoa aquilo te dói. Se ela não consentiu, te dói. Mas, opa, ela não consentiu. Espera aí, estamos diante de uma dor muito maior, que é a que ela sofreu. O Tomás cresceu cercado de privilégios, um homem rico, branco, hétero, sudestino… Tem tudo a favor dele para não enxergar, para ser um babaca. Essa figura vai se mostrando egoísta com o passar do tempo, porque ele também deseja uma família, também deseja um filho, são desejos legítimos e que a gente se reconhece mesmo. São personagens tridimensionais, complexos. É possível reconhecer nele desejos que são humanos, mas, por conta desse egoísmo latente, ele vai fazendo escolhas que você vai entendendo que é um cara difícil de defender.
Foto: André Wanderley